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STF ouve povos indígenas e ruralistas sobre marco temporal após Senado

O plenário do Supremo Tribunal Federal — Foto: Antonio Augusto/STF

O Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou a análise de ações que questionam a constitucionalidade do marco temporal, o controverso instrumento jurídico que define critérios para a demarcação de terras indígenas. Este julgamento crucial ocorreu um dia após o Senado Federal ter avançado na discussão de um projeto de lei sobre o mesmo tema, elevando a tensão em torno da pauta nacional. Na sessão, advogados representando os povos indígenas e defensores dos interesses do agronegócio e proprietários rurais apresentaram seus argumentos, destacando a profunda polarização e as vastas implicações jurídicas, sociais e ambientais da decisão. A interpretação do marco temporal, que limita os direitos à ocupação de terras até a promulgação da Constituição de 1988, é um dos debates mais sensíveis e com maior potencial transformador para o futuro das comunidades originárias e do desenvolvimento nacional.

Julgamento no STF e o contexto legislativo

O debate sobre o marco temporal alcançou um novo patamar de urgência com a pauta no Supremo Tribunal Federal. A retomada da análise das ações que questionam a validade da tese se deu em um cenário de intensa movimentação política e legislativa, apenas um dia após o Senado ter aprovado requerimentos relacionados ao projeto de lei que busca estabelecer o marco temporal de forma definitiva. Essa simultaneidade de discussões entre os poderes Judiciário e Legislativo sublinha a complexidade e a centralidade do tema para o país.

A cronologia dos eventos e a tensão institucional

A entrada do projeto do marco temporal na pauta do Senado Federal foi, por muitos observadores políticos, interpretada como uma reação direta a uma decisão anterior do ministro Gilmar Mendes. Na semana precedente, uma decisão monocrática do ministro havia alterado trechos da Lei do Impeachment, especificando que apenas a Procuradoria-Geral da República (PGR) poderia apresentar pedidos de impedimento contra ministros do STF. Tal movimento gerou insatisfação no Congresso, levando o Senado a acelerar a discussão de temas sensíveis ao Supremo.

No entanto, em um gesto que indicou um esforço de distensionamento das relações entre os poderes, o próprio ministro Gilmar Mendes suspendeu, na mesma quarta-feira em que o STF retomava o julgamento do marco temporal, o trecho de sua decisão que limitava a legitimidade para apresentação de pedidos de impeachment. Essa retirada foi percebida como um passo importante para aliviar a tensão institucional e permitir que o debate sobre o marco temporal prosseguisse em um ambiente menos conflagrado.

A tese do marco temporal em questão

A tese do marco temporal estipula que os povos indígenas só teriam direito à demarcação de terras que comprovassem estar ocupando ou em disputa judicial ou física em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Essa interpretação legal tem sido o cerne de um longo embate jurídico e político.

Em setembro de 2023, o plenário do Supremo Tribunal Federal já havia se posicionado sobre a questão. Por maioria, os ministros derrubaram essa interpretação, considerando-a inconstitucional para a demarcação de territórios, em uma decisão com repercussão geral. Naquela ocasião, a Corte afirmou que a proteção constitucional dos direitos originários dos povos indígenas independe da fixação de um marco temporal ou da existência de conflito físico ou judicial na data da promulgação da Carta Magna. Contudo, antes mesmo da publicação do acórdão do Supremo, o Congresso Nacional agiu, aprovando uma lei que restabeleceu a tese do marco temporal. Embora o presidente da República tenha vetado diversos dispositivos da nova legislação, esses vetos foram posteriormente derrubados pelo Legislativo. Com isso, partidos políticos e entidades de defesa dos direitos indígenas recorreram novamente ao STF, tanto para questionar a validade da lei quanto para reforçar sua inconstitucionalidade.

Argumentos em debate: povos indígenas

Os advogados que representam os povos indígenas e suas organizações argumentaram veementemente contra a constitucionalidade do marco temporal. A defesa dos direitos originários foi o pilar central de suas sustentações orais, ressaltando a precedência desses direitos em relação à própria formação do Estado brasileiro.

Direitos originários e a Constituição

A tese indígena é fundamentada na premissa de que os direitos territoriais dos povos originários são inerentes à sua existência, sendo anteriores à criação de qualquer legislação estatal. Eles defendem que esses direitos não podem ser limitados por uma data específica, como 1988, pois isso desconsideraria séculos de ocupação e relacionamento com a terra. O advogado Adriano Terena, coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), destacou que o marco temporal compromete diretamente a eficácia do artigo 231 da Constituição Federal. Este artigo reconhece os direitos originários dos povos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas e impõe ao Estado o dever de demarcá-las e protegê-las.

Os representantes indígenas argumentaram que muitos povos foram expulsos de seus territórios por meio de violência ou por políticas estatais antes de 1988. Exigir que comprovem a ocupação contínua até essa data seria, portanto, uma grande injustiça histórica, que ignoraria os deslocamentos forçados e as violações sofridas. Para as comunidades indígenas, a aplicação do marco temporal violaria dispositivos constitucionais que garantem a posse permanente e o usufruto exclusivo das terras tradicionalmente ocupadas. Além disso, a tese ameaça a própria sobrevivência física e cultural dessas comunidades, cujas identidades e modos de vida estão intrinsecamente ligados aos seus territórios. Adriano Terena enfatizou que as comunidades indígenas são os verdadeiros guardiões dos biomas e que suas terras constituem barreiras essenciais contra a crise climática. “As consequências da decisão deste caso serão sentidas por muitas gerações”, alertou.

Argumentos em debate: setor ruralista e segurança jurídica

Do outro lado do debate, os defensores do marco temporal, que incluem representantes do agronegócio e ruralistas, apresentaram argumentos focados na necessidade de segurança jurídica e na estabilidade das relações fundiárias no país. Eles sustentam que a fixação de um limite temporal é indispensável para evitar o que consideram um cenário de incertezas e potenciais conflitos.

Necessidade de limites e estabilidade

Os ruralistas argumentam que, sem um marco temporal claro, haveria o risco de revisão de títulos de propriedade já consolidados, o que poderia gerar uma profunda insegurança jurídica no mercado de terras. Essa instabilidade, segundo eles, afetaria diretamente a produção agrícola, com consequências econômicas significativas para o Brasil. Eles defendem que a Constituição de 1988, como o documento legal máximo do país, deve servir como o ponto de referência definitivo para a definição dos direitos territoriais, e não períodos anteriores que, em sua visão, poderiam abrir precedentes para reivindicações ilimitadas.

A ausência de um marco poderia, conforme a argumentação do setor, permitir que reivindicações de terras indígenas se estendessem a áreas produtivas e consolidadas, comprometendo investimentos e afetando a infraestrutura e políticas públicas. A preocupação central é garantir a previsibilidade e a proteção dos direitos de propriedade, essenciais para o desenvolvimento do agronegócio e a paz no campo. A defesa do marco temporal busca, portanto, delimitar os direitos, oferecendo uma base jurídica estável para as relações fundiárias existentes.

A busca por conciliação e os próximos passos

Diante da complexidade do tema e da intensa polarização entre as partes, o Supremo Tribunal Federal tem buscado ativamente uma solução conciliatória. Essa abordagem visa encontrar um equilíbrio entre os direitos dos povos indígenas e as demandas por segurança jurídica do setor ruralista.

Mediação e o retorno ao Supremo

Com o objetivo de tentar alterar a lei aprovada pelo Congresso e buscar um acordo, o STF promoveu um processo de mediação sem precedentes. Ao todo, foram conduzidas 23 audiências com representantes indígenas e proprietários rurais. Os povos indígenas defendem a derrubada integral da lei do marco temporal, visando a proteção irrestrita de seus direitos originários. Por sua vez, os proprietários rurais buscam segurança jurídica para permanecer em áreas que ocupam, especialmente aquelas adquiridas ou cultivadas após 1988.

Atualmente, os ministros do Supremo estão analisando os resultados dessas tentativas de mediação. A expectativa é que as propostas de conciliação apresentadas nas audiências sirvam de subsídio para a decisão final da Corte. O resultado deste julgamento não apenas definirá o futuro da demarcação de terras indígenas no Brasil, mas também terá um impacto profundo nas relações fundiárias, na preservação ambiental e na garantia dos direitos constitucionais dos povos originários.

Perguntas frequentes sobre o marco temporal

O que é o marco temporal?
É uma tese jurídica que defende que povos indígenas só têm direito à demarcação de terras que estavam ocupando ou em disputa em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.

Qual a principal diferença entre a visão indígena e a ruralista?
Os povos indígenas defendem que seus direitos sobre a terra são originários, anteriores ao próprio Estado, e não podem ser limitados por uma data. Os ruralistas, por sua vez, argumentam que o marco temporal é essencial para a segurança jurídica, evitar conflitos fundiários e proteger a estabilidade da produção agrícola, usando 1988 como referência.

Quais as implicações de uma decisão do STF?
Uma decisão do STF terá repercussão geral, definindo um precedente para todos os casos de demarcação de terras indígenas no Brasil. Poderá impactar a sobrevivência cultural e física de comunidades, a preservação ambiental, a economia do agronegócio e a segurança jurídica de milhões de propriedades rurais.

Mantenha-se informado sobre os desdobramentos deste julgamento histórico e suas profundas implicações para o futuro do Brasil.

Fonte: https://oglobo.globo.com

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