A compreensão da gravidade do aquecimento global sempre dependeu do nosso ponto de referência: qual temperatura consideramos normal para a Terra antes da intervenção humana? Tradicionalmente, o ano de 1850 era o marco para as análises climáticas modernas. No entanto, um novo e revolucionário conjunto de dados, batizado de GloSAT e desenvolvido por cientistas britânicos, está mudando essa perspectiva ao retroceder o período de análise até 1781.
Essa extensão temporal é crucial. Entre 1750 e 1850, a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera aumentou em 2,5%, uma elevação que, até então, não havia sido plenamente considerada nos cálculos do aquecimento. O novo registro de temperatura reforça a crescente percepção de que o planeta já aqueceu mais do que os modelos anteriores, baseados no início de 1850, sugeriam.
Reavaliando o Ponto de Partida do Aquecimento
A escolha de 1850 como ano de referência era, em grande parte, uma consideração prática, determinada pela disponibilidade de dados. Contudo, a Revolução Industrial, impulsionada pela máquina a vapor de James Watt em 1769, e o desmatamento para a agricultura, que libera carbono, já indicavam um início anterior para as alterações humanas. Colin Morice, principal autor do estudo GloSAT e cientista do Met Office Hadley Centre no Reino Unido, destaca que “1850 certamente não é o início da industrialização”.
O GloSAT, publicado na Earth System Science Data por 16 cientistas, revela que a Terra era significativamente mais fria do final do século XVIII até 1849, em comparação com o período de 1850-1900, que é a referência usual para o estado “pré-industrial”. Essa diferença sugere que o aquecimento já estava em curso.
O Papel Humano e as Erupções Vulcânicas
É importante ressaltar que nem todo o aquecimento observado entre esses períodos iniciais pode ser atribuído exclusivamente às atividades humanas. Fatores naturais, como duas erupções vulcânicas muito poderosas no início de 1800 (incluindo a do Tambora em 1815 e outra em 1808 de origem desconhecida), tiveram um efeito de resfriamento perceptível ao bloquear a luz solar. Parte do aquecimento subsequente foi uma recuperação natural desses eventos.
No entanto, a contribuição humana é inegável. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) já havia estimado em 2021 que houve um aquecimento causado pelo homem entre 0 e 0,2 graus Celsius entre 1750 e 1850. Os cientistas do GloSAT se alinham a essa avaliação. Um segundo estudo, liderado por Andrew Ballinger e aceito no periódico Environmental Research Letters, quantificou esse aquecimento adicional atribuível à ação humana em 0,09 graus Celsius. Piers Forster, da Universidade de Leeds, chegou a um número semelhante (0,1 a 0,2 graus) usando uma metodologia diferente, focada na relação entre temperatura e níveis de dióxido de carbono.
Decifrando o Passado: Termômetros Antigos e Registros Navais
A reconstrução das temperaturas de séculos passados é um feito notável. Ninguém monitorava o clima global 300 anos atrás, mas observadores locais registravam dados. Séries como a de Temperatura da Inglaterra Central, iniciada em 1659, e registros em Uppsala, Suécia (desde 1722), e Hohenpeissenberg, Alemanha (desde 1781), alimentam essa nova análise. O registro de Hohenpeissenberg, por exemplo, demonstra quase 3 graus de aquecimento regional entre 1781-1849 e os últimos 10 anos.
Para os oceanos, que cobrem 70% do planeta, os cientistas recorreram a registros de navios. Empresas como a Companhia Britânica das Índias Orientais e baleeiros registravam temperaturas do ar marinho para fins comerciais e de navegação. Esses dados, embora desafiadores de ajustar devido a vieses, foram cruciais para completar o panorama global, especialmente nos oceanos Atlântico e Índico. A metodologia do GloSAT utiliza medições de temperatura do ar marinho, em vez da água do mar, por serem mais frequentes nos registros iniciais.
O Que Isso Significa para o Presente e Futuro?
A percepção de que a Terra aqueceu mais e mais cedo pode ser assustadora, mas os cientistas alertam para não se tirar conclusões precipitadas sobre as metas climáticas atuais. Zeke Hausfather, pesquisador da Berkeley Earth, considera o GloSAT um avanço significativo, mas destaca que as metas do Acordo de Paris, por exemplo, são geralmente baseadas no período de referência de 1850 a 1900.
Peter Thorne, da Maynooth University, que revisou o estudo, concorda que a descoberta não anula as metas, mas ressalta sua importância: “Isso significa que aquecemos mais a Terra, mas não significa que os impactos ocorrerão repentinamente mais cedo. Eles estão onde estão. E eles foram quase invariavelmente calculados em relação a um período de referência muito mais recente.”
Em última análise, esse aquecimento adicional, mesmo que pequeno em termos de graus, não pode ser ignorado ao avaliar o impacto humano total no planeta. Para Thorne, ele se soma a um quadro que exige preocupação crescente com o potencial de impactos cada vez maiores. “Isso muda nossa percepção de quão longe já levamos o sistema climático de maneiras importantes”, conclui.